4.17. Espécies de Contratos – Jogo e Aposta

Motivação inerente ao projeto destes encontros:

Os cursos de graduação em Direito devem formar profissionais que revelem, entre outras, as seguintes competências e habilidades:

• interpretação e aplicação do Direito;
• utilização de raciocínio jurídico, de argumentação, de persuasão e de reflexão crítica;
• julgamento e tomada de decisões; e
• domínio de tecnologias e métodos para permanente compreensão e aplicação do Direito.


Fonte: DCN dos cursos de Direito – MEC.

4.17. Espécies de Contratos – Jogo e Aposta
 

1. Jogo e Aposta

2. Obrigação Natural

3. Diferença entre Jogo e Aposta

4. Sugestão de leitura para aprofundamento do estudo

1. Jogo e Aposta
 

O Contrato de Jogo e Aposta, regulado no Código Civil de 2002 na Parte Especial do Livro I, Título VI, Capítulo XVII (Do Direito das Obrigações → Das Várias Espécies de Contrato → Disposições Gerais → Do Jogo e da Aposta), artigos 814 a 817, configura-se, concretamente, em duas espécies de contratos, a saber, o Contrato de Jogo e o Contrato de Aposta. Isso porque, embora o Código não ofereça uma conceituação de jogo e nem uma conceituação de aposto, os contratos dizem respeito a eventos diferentes entre si, como será visto adiante.

Entretanto, cabe pormenorizar as diferentes espécies de jogos, a saber:

Jogos ilícitos: são os legalmente proibidos e a Lei das Contravenções Penais (Decreto-Lei nº 3.688/1941) define as condutas ensejadoras de persecução criminal, tais como jogos de azar, loteria não autorizada, jogo do bicho e outros.

Jogos lícitos: são os que não encontram tipificação nos textos legais e se dividem em tolerados e autorizados. O Código Civil de 2002, no capítulo ora abordado, se refere aos jogos e apostas toleradas.

Jogo ou Aposta tolerados não obrigam pagamento aos vencedores (então credores) dos valores envolvidos. Mas, se pagos, via de regra, não podem ser questionados, a saber:

Art. 814. As dívidas de jogo ou de aposta não obrigam a pagamento; mas não se pode recobrar a quantia, que voluntariamente se pagou, salvo se foi ganha por dolo, ou se o perdente é menor ou interdito.” (sem destaque no original).

Os jogos lícitos autorizados são espécies de contrato aleatório, consensual, bilateral e oneroso.


2. Obrigação Natural
 

Barretto (2017) [1], argumenta que obrigação natural é aquela cujo adimplemento não pode, por força normativa, ser exigido, mas, uma vez ocorrido, não pode ser revogado. Assim, os elementos caracterizadores da obrigação natural são a impossibilidade do adimplemento forçado e a irrepetibilidade (não restituição) daquilo que foi voluntariamente prestado. Os exemplos clássicos de obrigação natural constantes no CC são as dívidas de jogo ou aposta não permitidos legalmente (art. 814) e as dívidas prescritas (art. 882).

Art. 814. As dívidas de jogo ou de aposta não obrigam a pagamento; mas não se pode recobrar a quantia, que voluntariamente se pagou, salvo se foi ganha por dolo, ou se o perdente é menor ou interdito.

§ 1º Estende-se esta disposição a qualquer contrato que encubra ou envolva reconhecimento, novação ou fiança de dívida de jogo; mas a nulidade resultante não pode ser oposta ao terceiro de boa-fé.

§ 2º O preceito contido neste artigo tem aplicação, ainda que se trate de jogo não proibido, só se excetuando os jogos e apostas legalmente permitidos.

§ 3º Excetuam-se, igualmente, os prêmios oferecidos ou prometidos para o vencedor em competição de natureza esportiva, intelectual ou artística, desde que os interessados se submetam às prescrições legais e regulamentares.
” (sem destaque no original).

Normalmente, o caráter geral de alguns deveres faz com que eles concedam, ao titular do direito subjetivo contraposto, a certeza de que poderá exercê-lo dentro dos limites estabelecidos. Nas relações obrigacionais, todavia, a generalidade de tais deveres mostra-se atenuada. Eles remetem os indivíduos que não são partes a segundo plano, atingindo-os apenas indiretamente. Dessa forma, dirigem-se, de modo imediato, apenas ao devedor da obrigação – cuja vontade faz-se determinante para o cumprimento da prestação – assegurando uma compensação no caso do seu inadimplemento. Se esta não existisse, o direito de crédito seria totalmente ilusório.
Nas obrigações naturais, a situação mostra-se ainda mais peculiar: se não existe a garantia do direito subjetivo em relação à coletividade, também ela não está presente no tocante ao sujeito passivo isoladamente. O ordenamento jurídico, portanto, não confere qualquer segurança ao credor, frente à falta de cumprimento. Isso significa que ele não goza de ação para requisitá-lo perante a Justiça; não há, à sua disposição, qualquer meio, direto ou indireto, para exigir o adimplemento.
(…)
A inexigibilidade, característica essencial das obrigações naturais decorre do fato de a conversão da obrigação natural em civil, através de uma promessa de cumprimento, não caracterizar causa adequada para justificar a tutela jurídica. Por isso, o negócio celebrado com este objetivo não tem força vinculativa.

(,,,) Entretanto, embora sirvam de base apenas para um vínculo jurídico debilitado, as obrigações naturais mostram-se úteis ao credor, sempre que ele pode fazê-las valer sem a necessidade de recorrer às vias judiciais. Afinal, elas não se encontram completamente desprovidas de eficácia.
” (Barreto, 2017, pp. 209-211).


3. Diferença entre Jogo e Aposta
 

O Código Civil de 2002 não fornece a diferença entre jogo e aposta. Assim, para uma conceituação adequada dos institutos, deve-se buscar apoio na doutrina nacional ou comparada [2].

Uma abordagem na diferenciação entre os institutos repousa nas seguintes considerações:

Existe jogo quando, estabelecido um objetivo (ou descrição qualitativa de algo a ser obtido), são estabelecidas metas, ou formas de condutas pelas partes adversárias, de modo a que o objetivo seja alcançado. Os jogadores interagem e participam ativamente no desenrolar do jogo, contribuindo decisivamente para o resultado.

De modo análogo, no contrato de jogo existe um objetivo a ser alcançado e o resultado é influenciado pelos contratantes.

No contrato de aposta, diferentemente do contrato de jogo, as partes não têm quaisquer interferências no acontecimento que condiciona o resultado, dependendo este da simples verificação de fato aleatório. Posto em outros termos, o resultado da aposta está subordinado ao acontecimento de fato aleatório, sem que os apostadores possam nele exercer qualquer tipo de influência.

Assim, o jogo e a aposta caracterizam-se por implicarem a criação artificial de um risco endógeno ao contrato, que é seu elemento objetivo. O elemento subjetivo, ou intenção no contrato, é de natureza especulativa e lúdica, de entretenimento ou de lucro, que não guarda relação com uma atividade econômica estruturalmente organizada e geradora de riquezas sociais. Daí, então, a caracterização do jogo e da aposto, quando não autorizados legalmente, como atividades economicamente não produtivas, sem interesses na geração de riquezas coletivas e sem justificações sociais e, que, em decorrência, são apenas fontes de obrigações naturais.

Cabe aqui uma ligeira recordação sobre os fundamentos do direito das obrigações, forma a justificar o argumento sobre a ausência de interesses econômicos do jogo e da aposta.

O Código Civil de 2002 é um sistema normativo voltado para a regulação e tutela das relações entre particulares, relações essas que, necessariamente, envolvem interesses econômicos [3]. Nesse texto legal, as obrigações ocupam lugar de destaque, a saber, compõem o Livro I da Parte Especial (Parte Especial → Livro I → Do Direito das Obrigações).

Conceitualmente, obrigação é a relação jurídica (relação entre pessoas) transitória que obriga o devedor a dar, fazer ou não fazer algo economicamente apreciável em proveito do credor que, em razão de acordo entre as partes ou por imposição legal, adquiriu o direito de exigir ou impor tal comportamento ou omissão. (BEVILAQUA, Clóvis. Direito das Obrigações. Bahia: Livraria Magalhães, 1896, p. 6). Por excelência, o Contrato é fonte das obrigações.

Três princípios gerais norteiam o cumprimento das obrigações: a pontualidade (artigos 331 e 395 do Código Civil de 2002), a integralidade (artigo 314) e a boa-fé (artigos 113 e 422).

Pelo princípio da pontualidade, o credor não pode ser constrangido a receber do devedor coisa ou serviço diferente do pactuado, mesmo que apresentem valor monetário superior ao da prestação devida (artigo 313 do Código Civil de 2002). Entretanto, pela dação, “o credor pode consentir em receber prestação diversa da que lhe é devida” (artigo 356 do Código Civil de 2002).

Ainda, pelo princípio da pontualidade decorre a irrelevância da situação econômica do devedor, que não pode, com esse fundamento, solicitar a redução da prestação ou a obtenção de outro benefício (artigo 389 do Código Civil de 2002). Somente se a penalidade se tornar manifestamente excessiva ou se a obrigação tiver sido cumprida em parte, deve o juiz reduzir equitativamente o valor da penalidade imposta em razão do não cumprimento da obrigação (artigo 413). Além disso, “nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação” (artigo 478).

Finalmente, pelo princípio da integralidade (artigo 314 do Código Civil de 2002), o devedor deve realizar a prestação de uma só vez, ainda que se trate de prestação divisível, a menos que o contrário tenha sido pactuado entre as partes. Se o devedor oferecer apenas parte da prestação, o credor pode recusar o recebimento sem incorrer em mora.

Teoria das Obrigações

Entretanto, na obrigação natural, o vínculo jurídico, de natureza objetiva e que une credor e devedor está ausente, substituído por mero vínculo subjetivo (encontro de vontades sem tutela jurídica em sentido estrito, pois, em sentido amplo, a tutela se mostra na impossibilidade do devedor repetir aquilo que espontaneamente entregou ao credor). Daí a justificativa para o jogo e a aposta sem autorização legal serem caracterizados pela ausência de interesse econômico e se situarem na esfera das obrigações naturais.


4. Sugestão de leitura para aprofundamento do estudo
 

A dissertação a seguir especificada merece leitura detalhada, pois se contextualiza a tema há longo tempo em debate no Brasil, qual seja a legalização dos cassinos (Projeto de Lei 442/91) [4]. Também expõe o debate entre obrigação natural e obrigação civil, com a eventual passagem do jogo e da aposta, como regrados no Código Civil de 2002, para a órbita da obrigação civil.

Sugestão de leitura:

BARRETTO, Amanda Gouvêa Toledo: Natureza Jurídica da Obrigação Natural.

RESUMO:A obrigação natural é um dos temas mais controvertidos do Direito Civil, sendo objeto de fortes divergências doutrinárias. Por se tratar de um instituto bastante antigo, a obrigação natural foi considerada, durante algum tempo, como ultrapassada e pouco relevante. Todavia, recentemente essa figura voltou a ganhar destaque, no âmbito dos debates acerca da possível classificação dos instrumentos financeiros derivativos – contratos cujo valor deriva da cotação de uma variável subjacente – como jogo ou aposta. O assunto também esteve em foco na discussão do Projeto de Lei do Senado n° 186, de 2014, que dispõe sobre a exploração de jogos de azar no território nacional. O presente artigo analisa a obrigação natural no Direito brasileiro contemporâneo, explorando as teorias acerca de sua natureza jurídica e concluindo que a forma mais adequada de classificá-la é como uma obrigação essencialmente civil que, por razões de política legislativa, não recebe tutela do Estado.


Referências bibliográficas
 

[1] BARRETTO, Amanda Gouvêa Toledo.Natureza Jurídica da Obrigação Natural. Brasília: Revista dos Estudantes de Direito da UnB, 13ª ed, 2017, pp. 206-234.

[2] Argumentos derivados de artigo escrito em 2015 por Hugo Luz dos Santos, Magistrado do Ministério Público de Portugal.

[3] Nesse sentido insere-se a ementa da Lei N° 13.874, de 20 de setembro de 2019, e o artigo 1°, §§ 1º e 2º, in verbis: “Institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica; estabelece garantias de livre mercado; altera as Leis nos 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), 6.404, de 15 de dezembro de 1976, 11.598, de 3 de dezembro de 2007, 12.682, de 9 de julho de 2012, 6.015, de 31 de dezembro de 1973, 10.522, de 19 de julho de 2002, 8.934, de 18 de novembro 1994, o Decreto-Lei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946 e a Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943; revoga a Lei Delegada nº 4, de 26 de setembro de 1962, a Lei nº 11.887, de 24 de dezembro de 2008, e dispositivos do Decreto-Lei nº 73, de 21 de novembro de 1966; e dá outras providências”.

Art. 1º Fica instituída a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, que estabelece normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica e disposições sobre a atuação do Estado como agente normativo e regulador, nos termos do inciso IV do caput do art. 1º, do parágrafo único do art. 170 e do caput do art. 174 da Constituição Federal.

§ 1º O disposto nesta Lei será observado na aplicação e na interpretação do direito civil, empresarial, econômico, urbanístico e do trabalho nas relações jurídicas que se encontrem no seu âmbito de aplicação e na ordenação pública, inclusive sobre exercício das profissões, comércio, juntas comerciais, registros públicos, trânsito, transporte e proteção ao meio ambiente.

§ 2º Interpretam-se em favor da liberdade econômica, da boa-fé e do respeito aos contratos, aos investimentos e à propriedade todas as normas de ordenação pública sobre atividades econômicas privadas.


[4] Fonte: Agência Câmara de Notícias.



Jogo e Aposta