6.2. Atos Unilaterais – Gestão de Negócios

Motivação inerente ao projeto destes encontros:

Os cursos de graduação em Direito devem formar profissionais que revelem, entre outras, as seguintes competências e habilidades:

• interpretação e aplicação do Direito;
• utilização de raciocínio jurídico, de argumentação, de persuasão e de reflexão crítica;
• julgamento e tomada de decisões; e
• domínio de tecnologias e métodos para permanente compreensão e aplicação do Direito.


Fonte: DCN dos cursos de Direito – MEC.

6.2. Atos Unilaterais – Gestão de Negócios
 

1. Prólogo

2. Gestão de Negócios

3. Epílogo

 

1. Prólogo
 

Os negócios jurídicos tipificados no Código Civil de 2002 representam, invariavelmente, institutos consagrados pelos usos e costumes, a maioria presente no Código Civil de 1916[1]. Muitas das práticas sociais prevalecentes em épocas passadas não encontram o mesmo alcance de aplicação na contemporaneidade, como é o caso da Gestão de Negócios:

Gestão de negócios é a administração oficiosa de negócio alheio, feita sem procuração. É um mandato espontâneo e presumido, porque o gestor procura fazer aquilo que o dono do negócio o encarregaria, se tivesse conhecimento da necessidade de tomar a providência reclamada pelas circunstâncias.
(…)
A relação jurídica origina-se do fato da gestão, e a lei a disciplina, como se se originasse do mandato. O fato da gestão é a manifestação da vontade de tratar de negócio de outrem. Sugere-se, naturalmente, a benevolência, ou, como dizem alguns, o espírito de solidariedade. E a ordem jurídica regulamenta-a, não somente para tutelar os interesses do ausente ou impedido, como ainda para estimular esse movimento da alma, que nos leva a prestar auxílio aos que necessitam dele.
(…) também há na gestão de negócios uma forma de altruísmo. Os seus limites resultam da combinação de duas ideias: de um lado, não se deve desencorajar quem pratica ato útil a outrem, que resulta em benefício à prosperidade geral; de outro, é necessário não estimular a intromissão em negócios alheios, quando ela possa contrariar os interesses do dono do negócio. “A gestão será, pois, admitida em todos os casos que o gerente praticar atos que o gerido teria provavelmente praticado, segundo os usos, ou a sua disposição subjetiva”. Entretanto, de fato, a gerência ocorre porque as boas intenções do gerente se conformam com a utilidade social, que criam obrigações a favor do gerido.
[2]

A descrição apresentada contém uma série de qualificativos de natureza subjetiva, pois condizentes com a visão do autor e talvez prevalentes na época de escrita do texto (1926), mas sem qualquer tipo de vinculação necessária com a norma e que pode induzir o gerente ao erro, com danos patrimoniais indesejados. Isso por dois motivos:

1) Na hipótese de conflito de interesses levados a juízo, quaisquer argumentos apresentados deverão ser faticamente demonstrados (Art. 373 do Código de Processo Civil de 2015: “O ônus da prova incumbe: I – ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito; II – ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.)”.

Daí que motivações psicológicas como “benevolência”, “espírito de solidariedade”, “movimento da alma” e “altruísm”” deverão ser empiricamente demonstrados com provas robustas que obstacularizem suas impugnações pela parte contrária e apresentem a consistência requerida para convencimento do julgador (Art. 371 do Código de Processo Civil de 2015: “O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento.”);

2) O artigo 186 do Código Civil de 2002 constitui cláusula geral que confere ao magistrado a tarefa de criação do efeito jurídico relativo à incidência da hipótese normativa (“Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”). Nessa tarefa, o Juiz é levado a identificar a causa do negócio jurídico, que pode, em razão de sua natureza empírica, não corresponder à intencionalidade do agente quando da prática do ato, com a imputação da obrigação de indenizar ao gerente em benefício do gerido. Para mais bem se entender o significado de causa do negócio jurídico está transcrito na sequência enunciado apresentado na IV Jornada de Direito Civil[3]:

Enunciado: A causa, elemento inderrogável do negócio jurídico, manifesta a síntese dos efeitos jurídicos do negócio e como se interligam, determinando, assim, a função negocial. A prospecção desses significados designa três funções: qualificar os contratos, dar juridicidade ao acordo de vontades e, por fim, de grande relevância no novo Código Civil, limitar a autonomia privada, a partir do cotejo das cláusulas gerais inseridas na Constituição Federal de 1988 e no Código Civil de 2002.

Justificativa: Citando Maria Celina Bodin de Moraes, a noção de causa é tida como das mais difíceis e complexas em todo o Direito Civil. Há ordenamentos jurídicos que a ignoram, como o alemão, e outros que a codificaram, como o francês e o italiano. No Brasil, Pontes de Miranda advertiu sobre o erro de se ignorar o elemento causal, uma vez que o sistema inserido no Código Civil de 1916 já se encontrava fundado naquela noção. Causa, segundo o autor, é a função que o sistema jurídico reconhece a determinado tipo de ato jurídico, função que o situa no mundo jurídico, traçando-lhe e precisando-lhe a eficácia. Com efeito, não se pode negar que todo e qualquer instituto jurídico há de ter função própria para que se possa justificar a sua presença no ordenamento jurídico, seja de modo típico, seja atípico, isto é, permitido implicitamente pelo sistema. Essa doutrina transcende a necessidade de sistematização dogmática, pois, para determinar a disciplina aplicável a um negócio jurídico, há de se verificar o nexo de causalidade entre o efeito e sua função e o negócio jurídico. O Código Civil de 2002, art. 421, ao consagrar a função social como sendo da essência de qualquer contrato, evidencia a importância do conceito.

A doutrina alemã, ao elaborar a teoria do negócio jurídico, consagrou a teoria da vontade, pela qual os efeitos de um negócio jurídico decorreriam da vontade, e não da lei. Essa teoria só foi suplantada a partir de questionamentos sobre os limites da autonomia privada. Emilio Betti ensina que o negócio jurídico deve representar, além do interesse individual de cada uma das partes, um interesse prático que esteja em consonância com o interesse social e geral. Ou seja, devemos averiguar, na realidade, o porquê e o para quê serve o ato de autonomia privada, em suma, qual a sua causa.

Segundo Orlando Gomes, a principal utilidade da análise da causa é oferecer um critério de recusa de proteção jurídica a negócios sem justificativa ou sem significação social. Assim, além dos requisitos de validade: declaração de vontade, objeto e forma, há de se observar a causa, isto é, a especificação da função que desempenha, para Ihes negar ou conferir juridicidade, em especial a contratos atípicos.

Maria Celina Bodin de Moraes, citando Salvatore Pugliatti (Diritto Civile, Giuffre, 1951, p. 75), separa duas dimensões do elemento causal: uma abstrata e outra concreta. Da primeira, extrai-se o conteúdo mínimo do negócio, os efeitos mínimos essenciais sem os quais não se pode ter aquele tipo de negócio, ainda que assim tenha sido idealizado. No caso da compra e venda, se falta o preço, tratar-se-á de doação. Já a função concreta diz respeito ao efetivo regulamento de interesses, criado pelas partes, não se podendo definir aprioristicamente que efeitos são essências em um negócio particular. Ao se qualificar um dado negócio, será necessário examinar cada particularidade do regulamento contratual, pois uma cláusula aparentemente acessória pode vir a ser o elemento individualizador da função daquele contrato. Pode-se notar que essa teoria vai além do silogismo contido na subsunção, em que o resultado jurídico consubstanciado na qualificação/interpretação mais compatível com a manifestação da vontade das partes advém de uma forçada inserção do fato na norma. Conclui a autora que, se inexistente a causa abstrata, inexistente será o negócio, como, por exemplo, na compra e venda de coisa própria ou no contrato de seguro quando não há risco. Por outro lado, a inexistência de causa concreta significa a impossibilidade de se conferir juridicidade ao contrato, como no caso de empréstimo feito a jogador para que continue no jogo.

Vale destacar que a aplicação dessa técnica já se deu em nossa jurisprudência. Talvez o caso mais conhecido seja a discussão sobre a natureza jurídica do arrendamento mercantil financeiro (contrato de leasing), desenvolvida no Superior Tribunal de Justiça. No bojo do REsp n. 181.095 6, o Relatar, Ministro Ruy Rosado de Aguiar, entendeu que o pagamento antecipado do valor residual garantido (VRG) descaracterizava o leasing, tornando-o compra e venda a prazo, com desaparecimento da causa do contrato e prejuízo do arrendatário. Em 2002, tal entendimento foi sumulado pela Segunda Seção, Súmula 263. Todavia, em 2003, a Corte Especial, no julgamento do EREsp n. 213.828 7, firmou o entendimento exatamente oposto, consubstanciado na Súmula 293.

Independentemente da reviravolta jurisprudencial, ressalta a Professora Maria Celina Bodin de Moraes que ambas as Súmulas cuidam da qualificação do contrato por meio da causa. Aí reside a importância do entendimento exposado no presente enunciado: ir além dos elementos do negócio jurídico tradicionalmente considerados, para, a partir da averiguação da função que o sistema jurídico reconhece a determinado tipo de ato jurídico, estabelecer um critério aferível de recusa ou confirmação de proteção jurídica a negócios jurídicos, em especial aos atípicos.

2. Gestão de Negócios
 

A Gestão de Negócios, espécie de negócio jurídico classificada como “ato unilateral”, está regulada nos artigos 861 a 875 do atual Código Civil, na Parte Especial do Livro I, Título VII, Capítulo II (Do Direito das Obrigações → Dos Atos Unilaterais → Da Gestão de Negócios).

Os atos unilaterais estão tipificados no Código Civil de 2002 e são em número de quatro: Promessa de Recompensa, Gestão de Negócios, Pagamento Indevido e Enriquecimento sem Causa. Nesses, o titular de direito manifesta a vontade de assumir obrigação determinada, que nasce nesse exato momento. Como os atos unilaterais são fontes das obrigações, os requisitos destas aplicam-se àqueles (partes capazes; objeto lícito e possível, determinado ou determinável, e dotado de apreciação econômica; vínculo jurídico transitório).

A gestão de negócios é a conduta de agente não autorizado pelo interessado na administração de negócio jurídico deste, quando aquele infere quais os interesses, passa a gerir esses supostos interesses e assume responsabilidade civil perante o gerido e as pessoas com quem tratar (Art. 861 do Código Civil de 2002).

Os requisitos da gestão de negócios estão contidos nos Art. 861 e 864 do Código Civil de 2002 (“Aquele que, sem autorização do interessado, intervém na gestão de negócio alheio, dirigi-lo-á segundo o interesse e a vontade presumível de seu dono, ficando responsável a este e às pessoas com que tratar” e “Tanto que se possa, comunicará o gestor ao dono do negócio a gestão que assumiu, aguardando-lhe a resposta, se da espera não resultar perigo&rdquo., respectivamente), a saber:

1) Negócio de terceiro (“intervém na gestão de negócio alheio&rdquo. - Art. 861);
2) Intervenção não autorizada (“sem autorização do interessado” - Art. 861);
3) Desconhecimento da intervenção pelo titular do negócio (“comunicará o gestor ao dono do negócio a gestão que assumiu” - Art. 864);
4) Atuação em interesse do titular do negócio (“segundo o interesse e a vontade presumível de seu dono” - Art. 861).

As consequências da gestão de negócios contidas no Código Civil de 2002 para o gestor são:

1) Vinculação ao negócio (Art. 865);
2) A ratificação da gestão pelo titular do negócio retroage à data de seu início e se converte em mandato (Art. 873) e o titular assume responsabilidade pelos atos praticados em seu nome (Art. 869). No caso, extingue-se o ato unilateral e considera-se apenas o mandato para eventuais apurações de responsabilidades na hipótese de conflito de interesses.
3) A não ratificação da gestão pelo titular do negócio implica na responsabilização civil do gestor (Art. 874 combinado com Art. 861); 4) O gestor responde pelo risco contido em suas decisões (Art. 868);
5) Se delegar poderes a terceiro, o gestor assume responsabilidade pelos atos praticados pelo delegado (Art. 867);
6) Se a gestão de negócio acrescentar utilidade ao patrimônio do titular do negócio, este deverá indenizar àquele pelas eventuais despesas necessárias e prejuízos sofridos (Art. 868, Parágrafo único, e Art. 869).

3. Epílogo
 

O exercício de gerente (ou, para utilizar um sinônimo encontrado na doutrina, de gestor) na gestão de negócios envolve alto grau de risco de dano patrimonial para este, pois, se o ato unilateral tiver tido início sem ciência do titular do negócio, o gerente poderá ser forçado a responder por eventuais casos fortuitos (art. 862 do Código Civil de 2002). De modo similar, se os prejuízos da gestão exceder a utilidade, o titular poderá exigir a devida indenização (art. 863).

Referências bibliográficas
 

[1] A biblioteca digital do Senado Federal disponibiliza o ebook Código civil, quadro comparativo 1916/2002: (atualizada até maio de 2003), que permite a comparação dos institutos relativos às obrigações tipificadas nos códigos civis de 1916 e 2002.

[2] BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Commentado. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1926, v. V, tomo 2, p. 82. Os destaques não existem no original. Cópia digitalizada disponível em Biblioteca Digital do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região.

[3] Jornada de Direito Civil / Organização Ministro Ruy Rosado de Aguiar Jr. – Brasília: Conselho da Justiça Federal, 2007, pp. 131-133. Disponível em Jornada de Direito Civil.


Gestão de Negócios